Não dá para evitar o desafeto que tive de meus professores e professoras, tanto isso é verdade que pouco me lembro deles. Sumiu-me da memória seus semblantes, seus sorrisos, seus mau humores. Mas, sei que algo foi feito por mim. Entrei analfabeto aos sete anos na escola e quando percebi já lia e escrevia, embora tenha percebido isso bem mais tarde. No entanto, o tipo de infância que tive, ajudou-me muito em não recalcar nada disso, pois vivendo sempre partindo dos lugares, nunca fincamos raiz em nenhum deles, e esse fato talvez possa ter contribuído para que eu não estendesse meu coração aos meus professores(as) e aquele desafeto que citei, não significa mágoa, mas seria, simplesmente, uma ausência de afeto.
Mudávamos muito de aluguel a aluguel, de bairro a bairro, cidade a cidade, assim cheguei certa vez a estudar em três escolas em apenas um ano letivo. Da infância lembro-me bem, da rua, dos campinhos de futebol, do cemitério onde íamos frequentemente brincar “com os mortos”, da feira onde eu entregava panfletos e carregava sacolas das senhoras a fim de ganhar uns trocados, da estação de rede elétrica onde ficávamos subindo em enormes árvores, da casa abandonada que nos dava deliciosas goiabas, da menina em frente com seus olhos doces e cabelo solto. Disso me lembro bem, depois foram tantos lugares até chegar à periferia de Guarulhos onde em plena infância minha Infância se dilacerou na violência do lugar, e, para sobreviver, tive que me ferir de raiva e rancor com o mundo.
Mas daí talvez surja um divisor de águas.
Da primeira fase na Vila Formosa, minha infância foi bem mais sadia, embora, como disse, não me venha- clara e distintamente- na memória a companhia de algum mestre, exceto um. O professor de Educação Física. Mas, isso não ocorre do fato suspeito de quase todo garoto gostar das aulas de Educação Física. O que acontece é que ele, o professor que nós chamávamos, sorrateiramente, de “Espigão” (que de fato ele se assemelhava a uma espiga de milho gigante)- esse mestre me deixava frequentar os treinos dos garotos mais velhos, e me escolheu – pelos meus méritos futebolísticos é claro – dentre sete garotos de toda a escola, para representá-la num torneio intermunicipal, no qual terminamos em terceiro lugar dentre trinta municípios da cidade de São Paulo. Ora, esse mestre era querido por todos. Não lembro se quer de um grito que ele teria dado, também não me lembro de nenhum outro mestre gritando nessa escola. Mas o “Espigão” era muito complacente conosco. Paciente e correto. Profissional e amigo. Só para ilustrar o caso, lembro-me que o professor “Espigão” passou a nos ensinar os fundamentos do basquetebol, embora fôssemos fissurados por futebol, todos se dedicaram muito para tentar aumentar de altura um pouquinho( esse era o principal argumento do professor nos diálogos informais). Uns dos nossos colegas, porém- uns dos melhores aliás-, estava com um problema familiar, do qual alguns de nós sabíamos rasteiramente, pois morávamos perto da casa dele e os vizinhos comentavam. Parecia ser algo delicado e sério. Dessa forma, nosso amigo já havia faltado muito aos treinos , assim, o“Espigão” percebendo tal fato, nos perguntou sobre o motivo daquelas ausências. Falamos mais ou menos as mesmas coisas, o pouco que sabíamos. “Espigão”, noutro dia , estava dentro da casa do nosso amigo conversando com seus pais, nunca ficamos sabendo bem o que se deu, nem como rolou a conversa, mas no treino seguinte e todos os outros foram diferentes, pois o nosso amigo jamais voltou a faltar. Dessa primeira fase, o pouco que me lembro é isso. Um professor amigo. E talvez os outros de sala também os fosse, mas não me causaram nenhum afeto significante.
Na segunda fase, o mundo foi mais complicado. Estávamos num lugar terrível. Onde moro até hoje: na periferia de Guarulhos, mais especificamente, bairro dos Pimentas. Naquela época, aqui era terra de ninguém( e alguns lugares hoje ainda o são). Não dava para educar aqui, sem ser conformista nem fatalista, ora, se deparar com corpos cheios de tiros quase todas as manhãs dos finais de semana não é fácil para um menino que nunca vira isso, que nunca vira a morte. Lembro-me que na escola essa história de bullying já era muito presente, diferente, portanto, das escolas da primeira fase, nestas ninguém ficava se agredindo física nem psicologicamente, mas, quando passei a estudar nas escolas dos Pimentas, sofri muitas vezes com isso, tantas, que frequentemente tinha que correr na saída da escola para não apanhar, mas, nunca soube bem os motivos.
O que fiz? Passei a ser perigoso também. Indisciplinado, inquieto, violento. Era a expressão mais valorosa daquele lugar,e, infelizmente, o é em muitos lugares até hoje. Dessa fase, os professores(as) vêm na minha memória como seres involuntários. Faziam o que podiam, mas quase não podiam nada. Lembro-me de um caso quando eu estava na 5º série. Havia uma professora chamada Carmelita de Português, um amigo meu e eu, depois do segundo semestre, quase não assistíamos as aulas dela, pois Carmelita, sabiamente, não queria nossa impertinente presença. Não sabíamos o nosso lugar, não tínhamos discernimento para tanto, mas precisávamos ser corrigidos urgentemente. Ela preferia não arriscar em chamar nossos pais, mas ela não sabia que, se o fizesse, aquilo teria um fim. Não o fez. No entanto, algo mudou. Nova mudança estava por vir na minha família. Minha mãe odiava os Pimentas e decidiu que iríamos voltar para Vila Formosa, assim que todos terminassem bem o ano escolar (uma recuperação atrasaria pelos menos um mês nossos planos); daí resolvi me corrigir para passar de ano. Veja eu não tinha discernimento, mas podia entender as coisas, e elas apontavam-me o meu futuro. Assim aconteceu, voltamos, fui feliz mais dois anos, depois retornamos de novo, dessa vez sem volta. Sem alegrias.
Dos professores(as) dessa fase última, lembro-me burocraticamente. Nada que os desabone, também nada a acrescentar. Faziam seu papel e eu, já adolescente e trabalhando, fazia o meu. Nunca pude idealizar nenhum professor(a), pois nunca pensei em ser um. Nem sempre as pessoas que são professores(as) tiveram uma lousa em casa e brincavam de dar aulas. Minhas brincadeiras sempre foram de criança mesmo.
Hoje, vejo a profissão docente como algo diferenciado em sua prática, mas não tive espelhos. Jamais seria um “Espigão” e bem menos uma Carmelita. Os dois foram importantes, mas o mundo hoje é outro. Nunca idealizei atleta, nem ator, sem artista nenhum, porque idealizaria um professor(a)? Mas, como docente a sete anos, posso afirmar: o educador em sua prática, não pode viver de passado, não pode questionar o futuro do qual ela não consegue enxergar, mas pode atuar no presente. A tarefa não é fácil, mas, caminhemos!
Anderson Ferreira
poeta, professor e músico